CONTACT

Ao contrário de meu amigo pensante, que utilizou a última postagem para sair um pouco do "academicismo", uso esse espaço para compartilhar um pedaço de uma pesquisa que iniciei no semestre passado para a disciplina "Práticas Culturais em Contexto Urbano", ministrada por José Cantor Magnani: "Contato e Improvisação sob um olhar antropológico urbano".

Pretendo, com isso, resgatar um relato de caráter "semi-antropológico" (pelo experimental), divulgar o Contato-improvisação a quem ainda não conhece essa modalidade da Dança Contemporânea e estimular a prática do Olhar e do Contato a todos que se interessem pelas artes vivas da vida. 


"Duas mulheres correndo" de Pablo Picasso

"(...)

Jam de Contato-Improvisação:
Experimentando efetivamente a imersão após algumas idas a campo:

25 de Maio de 2010,
É tarde de terça-feira. Venho a pé do metrô São Judas. Chego no portão do Clube Helvetia/ Maison Suisse, Indianópolis, o segurança me autoriza a entrada e me dirijo até a sala do Contato, o “Espaço Corpo”. A última do corredor, ao lado do banheiro. A porta está fechada. Do lado de fora, um banco de madeira, e sobre ele uma grande cesta com salgados Vegan. Logo abaixo, chinelos de tecido, sandálias e bolsas coloridas. Já é possível sentir uma "energia" diferente no ar. Da sala, sai Ricardo Neves, dançarino e docente do Contato, que me cumprimenta com simpatia. "Olá. Só mais dez minutos que estamos encerrando uma reunião, tá bom?". Em precisos dez minutos, a porta se abre novamente: "a jam está aberta". Tiro as sandálias do pé, deixo a bolsa sobre o banco e rumo ao interior da sala, de corpo livre e mãos vazias. "Acho que entrar com um caderno (de campo) pode deixá-los desconfortáveis.", penso. Lá dentro, uma música suave permeia os ouvidos recém saídos do fervor sonoro da Av. Jabaquara e vai afastando as tensões desde a cabeça até os pés que agora pisam num solado de borracha.

Encontro ali Hary Salgado, também dançarino e docente, Flora Adams e Cindy Quaglio, dançarinas, que me dão as boas-vindas e começam, cada uma, exercícios de alongamento e concentração. São independentes: enquanto uma alonga as pernas, a outra, a metros de distância, estica os braços.

Ricardo Neves caminha lentamente pelo espaço da sala. Le... n... ta... m... en... te...

A relação parece se dar entre cada um e si mesmo, si-corpo; entre cada um, que respira, e o solo que lhes serve como base. A relação automática que comumente travamos com o chão é estranhada. A imagem que tenho é como a de um extraterrestre (no sentido de que não está acostumado com a gravidade da Terra) recém-chegado, que sente pela primeira vez o seu próprio
peso sob essa nova força gravitacional num estado de deslumbre e experimentação. O solo ganha novas funções. Função de equilíbrio, de sensibilização do tato (para perceber cada contorno da planta do pé), de fonte de energias.“O solo se sentia parte do corpo.” (ALBERNAZ e FARINA, 2009).

Estou relativamente relaxada. Alongada, levemente aquecida, respirando o chão. Mas receava quando alguém chegava muito perto: “ai se ele/ela me tira para dançar...”. Minha falta de experiência se converte em um certo desconforto. Lá, a impressão que eu tinha era de que eram todos muito experientes e seguros de sua técnica. Pelo contrário, na Dança, eu era ninguém.
Ademais, uma ninguém míope: meus óculos haviam do lado de fora da sala. Era, no mais, uma aspirante à antropóloga que estudava alguma coisa de Teoria Musical e Arte-educação. Todavia, de nada me serviam os estudos naquele exato instante. A prática sensível do Contato exigia algo mais. Algo que talvez não possuísse ainda. Uma coragem para revelar meu corpo a um
desconhecido. E agora? Não adianta, o agora não tem previsão de chegada. E, no Contato, chega sem palavras, como aconteceu comigo em seguida.

Na minha cabeça, sentia-me um pouco mais segura há alguns minutos por ter me deslocado para fora da “área de risco”, ou seja, fora do solado emborrachado no qual as pessoas costumavam dançar. Estava sentada numa estreita faixa de piso que se localizava entre a parede e o solado de borracha, apoiando-me na parede e contemplando a dança que já se desenrolava entre os pares. Olhava tudo aquilo com encantamento, mas esquivava o olhar sempre que um outro parecia ir ao encontro do meu. Sabia que nessa dança o contato do olhar era um gesto significativo, podendo ele ser convite irrecusável para uma dança. E os evitava, pois.

No entanto, surge da porta uma quinta dançarina, também professora do Contato, que adentra a “área de risco” (no seu caso, sua área de conforto, familiar) e inicia movimentos de alongamento, relaxamento e concentração. À partir de então, o fato do solado acomodar um número ímpar de dançarinos me deixa novamente apreensiva. Passo a evitar especialmente o olhar da pessoa que está só. E torço para que a porta se abra outra vez para acabar com aquela “sensação do ímpar”. Minha área de conforto é invadida por essa sensação. Quero sair correndo daquela sala. Mas o ofício não me permite. É preciso me apegar ao que já havia lido: o Contato acontece entre “pelo menos” duas pessoas. “Formem um trio, formem um trio...”.

Eis que um dos pares é desfeito e Hary Salgado vai até a dançarina recém-chegada. Acolhe-a com carinho e massageia seu corpo inteiro, que está de bruços no chão. Cindy, que agora é o elemento ímpar, acomoda-se sobre uma das grandes bolas de plástico que estão num outro canto da sala. As duas interagem, Cindy e a bola azul. A bola azul é o sexto elemento e torna a composição novamente par, fazendo-me sentir menos vulnerável.

Noto que todo o processo é diretamente refletido em meus músculos, no modo como eles tensionam ou relaxam, conforme o nível de vulnerabilidade que sinto possuir sob cada circunstância apresentada. O olhar, ou mais precisamente o não-olhar, também reflete meus pensamentos. E comunica aos demais participantes acerca de meus receios. Meu desconforto também os afeta, sinto eu. É que, pelo número reduzido de participantes, o espaço é ocupado apenas parcialmente pelos dançarinos, o que torna minha presença mais evidente no campo visual e a interação, ainda que temida por minha parte, é maior do que nas sessões com mais participantes.

A minha presença era de tal modo percebida que, num determinado instante, Flora e Ricardo Neves trocam umas palavras, distanciam-se e o olhar dele se dirige a mim, fixa-se nos meus. Insinua um convite. Faço caretas como quem diz “mas eu não sei...”. O olhar insiste, agora acompanhado do gesticular de uma das mãos, simulando alguém se despindo do colar. “Ah, meu
colar...”, quando percebi já havia retirado o colar e me dirigia a ele, adentrando a zona de risco. Frio na barriga, músculos tensionados. Respiro. “É preciso ter autonomia de si mesmo, de sua própria respiração, para entrar em contato com o outro.”, lembrava-me da fala do próprio Ricardo numa oficina que assisti na Olido há duas semanas.

Ricardo agora está a alguns centímetros de meu corpo, o olhar ainda fixo nos meus olhos, olhar confiante e solidário que transmite tranquilidade. Mas para meu corpo ele ainda não deixa de ser ameaçador.

No cotidiano, meu corpo, que se estende num campo maior que os limites físicos do próprio corpo, é minha zona de conforto só enquanto ela não é invadida por nenhum outro corpo não familiar. A aproximação do outro é vista como uma ameaça na maior parte das vezes. E o homem das grandes cidades, especialmente de São Paulo, está o tempo todo sujeito ao contato físico indesejado. Paulistanos dividem vários momentos de “aperto” todos os dias, principalmente nas horas do rush, seja nos pontos de ônibus, trens ou metrôs, constrangendo-se uns aos outros, pedindo desculpas ao se encostarem, contraindo seus músculos, desviando seus olhares. Tal fenômeno pode ser relacionado à “reserva” de que trata Georg Simmel em seu histórico trabalho “As grandes cidades e a vida do espírito” (1903):

Decerto, se não me engano, o lado interior dessa reserva exterior
não é apenas a indiferença, mas sim, de modo mais freqüente  o que
somos capazes de perceber, uma leve aversão, uma estranheza e
repulsa mútuas que, no momento de um contato próximo, causado por
um motivo qualquer, poderia imediatamente rebentar em ódio e luta.

Mas será que o contato físico, afora o automatismo das reações aparentemente aversivas, é realmente repudiado?

Volto ao momento clímax da observação participante a qual vinha descrevendo anteriormente. O próximo gesto do professor me pede para fechar os olhos. E já não vejo mais com os olhos. Nem ouço mais com os ouvidos. Sou inteira ouvido tátil. (PAXTON, 1987).

O outro, até então desconhecido, é aos poucos me revelado corporalmente. O improviso no contato pede a libertação dos tabus sociais, da reserva individual, da reprodução de movimentos cotidianos e limitados. O corpo tem seu momento de libertação pela criação artística conjunta.
Utilizamos o peso dos corpos a nosso favor. Realizamos rolamentos, mergulhos, giros. À partir de determinado nível de interação, ganhamos confiança um no outro, e ele, que no início era sentido como ameaça/risco, passa a compartilhar comigo a sua zona de conforto, sendo ele também uma extensão da minha, ou seja, estende-se a área de conforto pelo dobro do que havia antes, tanto para ele quanto para mim (1+1~=4). E é então que o fluxo de movimentos se dá de forma mais harmoniosa. Olho mais nos olhos quando estamos frente a frente.

Aos nossos ouvidos, a música do rádio é quase imperceptível. A composição rítmica cabe a cada par de dançarinos. Sua fluidez é motivo de suspiros.

Aos poucos, aproximamo-nos de um terceiro elemento, Cindy Quaglio, que passa a interagir conosco. Ricardo Neves se desliga de nossos corpos, vai até Hary Salgado e inicia uma nova dança com ele.

Prosseguimos a dança entre duas mulheres, Cindy e eu, e o nível de familiaridade e de conforto conquistados há pouco com o outro retorna quase à estaca zero. “Quase” pois ao menos meu corpo se encontra menos desconfiado em relação à experiência da dança e do espaço. Sinto-me de certa forma iniciada no Contato. Há, todavia, um outro “outro”. É preciso recomeçar, perceber mais cuidadosamente os limites da estrutura física e emocional desse novo indivíduo para criar segurança/confiança na relação entre os corpos através dos movimentos.

De início, o evidente: corpo mais leve, o qual me serve menos como base. Tal circunstância me deixa insegura o tempo todo, sinto que posso machucá-la com meu peso. Há mais momentos de pausa. Mas, aos poucos, os movimentos fluem.

Hary desliga o rádio. E só então percebo que a sala já está praticamente vazia: ali dentro, apenas Hary, Cindy e eu. Diminuímos o ritmo dos movimentos até cessá-los de todo.

“Deu pra dançar um pouquinho, né?”, diz a moça num volume bem baixo, sorrindo para mim. Distanciamo-nos mais ou menos um metro uma da outra e, aparentemente, nos voltamos cada uma novamente para dentro de si, sentadas.

No entanto, do silêncio absoluto daquele momento, surge novamente a voz pianíssima, versando: “Força da paz... cresça sempre sempre mais...”.

Reconheço a canção. Era uma espécie de mantra que havia aprendido há alguns meses em Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, de um grupo que misturava práticas espirituais e permacultura, Udhyana Banda, durante o 10º Fórum Social Mundial. (“Como ela conhecia também?”)

Para sua recíproca (e visível) surpresa, continuo: “... que reine a paz, acabem as fronteiras...”.

Imediatamente, o contato de olhar é refeito. A curiosidade paira no ar, mas vamos até o fim da música: “... nós somos um.”.

Sorrindo, repetimos o mantra. Só então perguntamos uma a outra: “de onde você conhece essa música?”. E é assim que inauguramos o contato verbal após nossos corpos terem se conhecido. E vibramos com a coincidência.

Coincidência?

(...)"



Not Until Now - Um filme do Contato-improvisação por Brandon Gonzalez:

Um comentário:

Mariana Menezes disse...

Eu li teu texto e, não sei se era permitido, salvei ele no meu computador. Consegui visualizar nitidamente a situação e senti também os momentos. Muito rico e delicado o que você escreveu. Eu poderia fazer um tanto de observações, mas aí me demoraria e seria entediante ficar lendo por aqui. Preciso estruturar melhor as ideias. E gostei muito do video, também. Bem sensível. Agradeço muito! Muito bonito.