Mulher e Pássaro ao Luar (1949), Joan Miró.
Primeiro diálogo sobre Deus
Com aquela incômoda sensação de atraso (não exatamente por estar atrasada, mas pelo fato do tempo - que não é, em si, um fato - dever trazer incômodos às pessoas sensivelmente fora-do-tempo), esperava um ônibus e engolia os ponteiros e as partituras sobre as mãos enquanto ensaiava mentalmente a melodia de Caro mio ben, ária antiga de Giordani, pouco antes do teste marcado para as oito. Ademais, sentia aquela insegurança ruborizante prestes a me fazer voltar para casa quando aquele alguém apareceu. Estilo descolado, negra cinquentona de sorriso avassalador, vem perguntando alto sobre um cartaz que, sinceramente, nem sei se já existiu mesmo algum dia:
- Ué. Mas vi ainda ontem um cartaz colado nessa parede falando de um curso de Canto grátis para a gente da vila. Você viu se alguém tirou daqui, moça?
- Ah, é? Não vi não... (Sorrio. Volto às minhas partituras.)
- Ah, então era você que estava cantando?
Surpreendida, já que cantava tão baixo a ponto de meus ouvidos mal perceberem a vibração sonora, dou-lhe exclusividade e largo meus papéis no banco. Conversa vai, conversa vem, conta-me de toda sua vida de artista revelação, coisa que só havia ocorrido nove anos antes, quando largou a timidez para brilhar nos palcos da igreja. Depois de cantar em alto e bom som, tom de negro-spiritual invadindo a cidade, e de receber meus elogios empolgados, ela sorri orgulhosamente e tenta me encorajar a fazer o mesmo:
- Agora canta para mim você, mocinha.
- Ah, mas tenho vergonha... para mim, sei lá: cantar na frente dos outros é difícil. [Cantar... cantar é mostrar as tripas! É revelar minha emoção lá de dentro de um jeito orgânico, orgástico. Meu pudor me trava, respeito isso em mim, mas sinto-me imponente, tenho vergonha. Prendo-me na técnica e mal consigo respirar. Aí que] a voz não sai. (bufando, olhar aflito.)
- Pois então [as] ofereça a Deus. Cante de todo coração para Deus. Envolva-se com Fé na canção que vive.
Agradar aos ouvidos do público é só consequência.
Arrisco dizer com toda alegria que, naquela noite de belo luar, minha voz brilhou singularmente! Ou, pelo menos, senti esse Deus (Universo, Verso Absoluto, etc) vibrando comigo, em minhas fendas vocais, minhas tripas, meu coração, toda Eu, durante a prova, como naquele anjo que me aconteceu. Agradeço, eu agradeço. E canto porque a vida está completa. Amanhã é outra vida.
A lista saiu há pouco e estou na lista de espera. Vaga incerta, mas a certeza de que a lição mais importante já me foi dada fora da sala de aula. Como acredito serem mesmo as grandes lições desse mundo.
Um comentário:
Ficou a curiosidade de te ouvir cantar.
Não é possível que nessa geração YouTube não tenha nenhum vídeo seu (mesmo que caseiro) lá.
E aí?
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