Ciências Sociais

De uma Recém Chegada ao Universo Científico

Conversávamos sobre a nossa sensação estando em contato direto com questões de caráter político, da importância do olhar crítico sobre a realidade e sobre a nossa experiência como ingressantes em um curso teórico como as Ciências Sociais, quando entramos em contato com o Movimento Estudantil de forma brusca e imediata - inúmeras assembléias e discussões entre grupos políticos se realizaram já na primeira semana na Universidade, semana da Calourada, e as primeiras impressões não foram lá muito positivas: discursos repetitivos, agressividade dos discursantes com os opositores e o inverso também, indefinição das propostas... a recepção afastou muita gente, com absoluta certeza.

Realmente, as Ciências Sociais requerem e desenvolvem um posicionamento crítico do aluno em relação aos acontecimentos e à realidade a que eles pertencem, os fenômenos devem ser interpretados; buscamos razões, motivações e processos que os expliquem, fazendo uso, para isso, de uma ampla carga de leitura de clássicos do pensamento, inicialmente, em Política, Sociologia e Antropologia, coisa que assusta, sim, qualquer um que chegue ali caso este não estivesse habituado, em momentos anteriores, com a quantidade bárbara de textos amontoados num canto do quarto ou da sala a tomar poeira e umidade depois de porcamente lidos (no meu caso, pelo menos).

Na melhor das hipóteses, se cumprida a tarefa árdua de intensa leitura que nos pede o curso, passamos a notar diferenças em nosso próprio modo de encarar o mundo, a sociedade, as instituições, o comércio do Seu Zé, a barraca da Tia Bia, o glamouroso banco da esquina, os avós, o pai e a mãe, e até o de olhar sobre si mesmo. Surge uma busca incessante pelas causas sociais de todo fato corriqueiro, tão logo incorporamos a percepção sociológica, o olhar antropológico e o questionamento político, de que se faz um bom cientista social.

Para mim, esse período de transição tem sido, particularmente, conflituoso. Conflitos internos, questionamentos quase existenciais, tentativas de adaptação ao novo modo de enxergar tudo isso, de se relacionar com as pessoas de convívio diário, tal como a família, ou periódico, como aqueles amigos que estão seguindo carreiras de áreas muito distantes e não fazem idéia da revolução mental que esse curso é capaz de provocar. Parece um tremendo exagero, afinal, quanto menos física é a mudança, menos profunda ela parece ser, apesar de não sê-la. A transformação de que trato aqui é interna e o que posso garantir é que ela pesa mesmo, mas me desafia a caminhar ao seu lado diariamente.

Talvez tenha largado aquela visão puramente contemplativa das coisas, aquela sensação de criança sobre a relva sem nada pensar, sabe? Perdi também o espírito: das sensações pelas sensações. Perdi o encanto do pouco saber. Perdi o ar fresco que me batia na face e nele permeava sem dificuldades, saindo pela nuca. Perdi meu caeiro. E isso me parece uma perda sem volta, infelizmente. A ignorância, em certo sentido, me era a paz. E esse contato com a complexidade das estruturas e dos problemas sociais sob a óptica científica do curso me trouxe a consciencia aberta das grandes imperfeições do mundo, tornando-o maior, mas fazendo-me menor, mais impotente, já que os problemas são tão mais numerosos e complicados do que pareciam ser naquela época.

Ademais, juntamente ao poder contemplativo, distancio-me de outro aspecto, o da religião. Na verdade, nem há muito a se explicar, pois a oposição se dá claramente: possuir uma visão crítica se contrapõe a aceitar dogmas, já que “verdades absolutas” inviabilizam seu questionamento mesmo que superficial. Portanto, é de notar que a minha vida espiritual está uma desordem também, caminho na busca de minhas próprias crenças e práticas espirituais, policiando-me todo o tempo a fim de afastar aqueles valores cristãos arraigados com os quais já não me identifico mais. Evidente que essa mudança não foi repentina e imediata. Antes da escolha do curso eu já apresentava vários sintomas de descrença em relação à Igreja Católica. Não freqüentava mais missas, não me confessava mais ao padre, embora ainda me arrependesse de cada mínimo ato que fugisse às boas práticas como cristã, indagava-me sobre certas incoerências na história da Igreja - como “não matarás” depois de botar tanta gente na fogueira? -, e até falava mal dos sermões do padre ao relembrá-los com minha irmã. Esta sim, era católica fervorosa e chegava a ajoelhar-se no milho depois de julgar ter cometido um pecado.
Enfim, a entrada nesse novo universo foi apenas o golpe final sobre o terço, o sopro forte nos grãos de milho, dentre os quais, no entanto, restaram aqueles de maior peso: faço o sinal da cruz três ou quatro vezes ao dia ainda. É automático. Veja como a força do hábito é realmente poderosa!

Felizmente, nem tudo é perda nessa revolução, aliás, pouco disso é perda. Pois como ganhamos prolixidade! Escrevemos calhamaços numa tacada só, com empolgação e aparente domínio das idéias, sem muito hesitar. Pois quão tolerantes ficamos! Enfim descobrimos quão relativas são nossas análises sobre os outros grupos e que eles possuem também um ponto de vista particular, fundamentado e respeitável sobre a existência dos homens e das coisas. E assim buscamos a compreensão do outro. Pois quão subversivos nos tornamos! O conhecimento dos mecanismos que fazem a máquina funcionar e das injustiças sociais provenientes destes nos instiga a corrigi-los, conscientes, porém, da nossa impotência em fazê-lo para o todo. Dedicamo-nos, então, a áreas delimitadas do conhecimento. Recortamos nossos objetos. Escolhemos um foco, “salvemos as baleias!”; mas agimos, sim.

Mas pensamos o que acontece nas populações tribais da Nova Guiné, ou de Madagascar, dificilmente saindo de nossos lares para isso. Fazemos o trabalho por meio de leituras e reflexões, tudo no plano abstrato! (exceto trabalho de campo), o que em certos momentos me parece questionável. Não estamos aqui para usufruir nossos sentidos? Interagir com a comunidade mais do que estudar essas interações? Sentir o calor dos primeiros raios solares tocando a pele no despertar do dia ao invés de estudar a relação afetiva entre os admiradores da aurora da Torre do Relógio em dias de frio?
É de pensar nisso que ainda sinto uma forte angústia.


4 comentários:

Noubar Sarkissian Junior disse...

Camila, eu esperei esse texto. A dani me falou dele ontem, e eu torci pra que vc publicasse aqui! Mas torci sinceramente, até com certa angústia. Pelo que a dani adiantou quanto à temática, eu tinha a certeza de que iria encontrar algo cheio de impressões conflitantes, e por isso lindas! Belas porque espontâneas e transparentes, pra além do prazeroso texto.

Provavelmente vc viverá mais uns quatro anos de confusões, e elas irão lhe render momentos bons, viu!? as crises existênciais deverão ser mais constantes, mas seu mundo já é maior, cresce com cada leitura e com cada conversa.

Ah, menina!

beijos

Daniela disse...

Ah!!!!
Esse texto eu diria que você escreveu por mim, pela Elaine, pela Aline, enfim por todo mundo da FFLCH, ou quase todos. Suas metáforas são ótimas e deixam o texto muiiiito lindo!
E eu vejo vocÊ entrando naquele prédio rosa do meio e recebendo panfletos, com pessoas do ceupes falando de pessoas do dinamite e te convocando pra assembléias...é como você falou: "de forma brusca e imediata". Eu consigo te ver confusa, Camila[!!!]
O bom desse conflito é que ele te rende reflexões muito boas!
Torço pra que seja sempre assim: não se acomode, coloque seus ideais em coflito!

Érika Gibaja disse...

Ahhhh, mas vc escreve bem pra caramba, tbm! (Ou não "tbm", pq eu me acho perto de péssima... ¬¬)

Cool.

;)

Mia disse...

Budinha (:

É por tudo isso que por vezes a gente vai entrar na FFLCH militando, apresentando bons seminários, amando as aulas de documentação visual. E, por outras vezes, nós vamos sair de lá dizendo não às reuniões, não às aulas e correr em direção à pedra.

Às vezes penso que essa angústia é só o caminho para achar a medida das coisas. Ainda que as perdas pareçam inevitáveis, acredito que podemos ir vivendo conciliando tudo que nos faz bem a esse estranho universo científico.

Em um primeiro momento, a idéia de que tudo é "socialmente construído" foi contra às minhas crenças cientidicamente infundadas em mágica, música, amor. Mas eu não perdi nenhuma delas por me dar conta de que a ciência é senão também mais uma crença, que não é mais bonita que a mágica, a música, o amor. Porque todas elas são bonitas em suas maneiras próprias de nos fazer sentir, pensar e agir.

Vamos explorar todas essas seções, universos, corpos, dimensões, que se entrelaçam de formas que às vezes a gente se orgulha de conseguir explicar cientificamente e que, em outras vezes, a gente simplesmente fecha os olhos e entende sem saber explicar.

Em dois semestres dentro da USP, seu texto foi o único manifesto que me comoveu. Linda produção!

Da sua fã
Mialicious xD