Apenas uma transcrição, e as saudades, ainda.
I. O Paraíso não é azul. O Paraíso é verde. Encontra-se aqui mesmo, sobre a terra úmida de São Thomé. Ele começa no atraso do galo preguiçoso, a roçar os dedos dos pés descalços no capim de frescor matinal, acompanha a despedida da névoa por entre as montanhas distantes, celebra a energia solar virtuosa sobre cada parcela do corpo, em sua descoberta sensorial diária após uma noite fria regada a chás de camomila e erva-doce, clarões de uma fogueira improvisada e notas de voz e violão em paz com o ambiente abençoado, com as cores de todas as coisas, estrelas-cadentes, conversas leves, alimentação vegetariana, caronas, andarilhagens, estrelas, abrigos, vida vivida a recordar num instante eternizado por uma foto e um sorriso não forjado. Aqui, as pessoas são simples, bonitas, de olhos vivos, mãos ágeis, pés incansáveis, com amor, tanto amor... silencia a dor do impasse do não-estar, aqui estou e sou quase livre. É bom sentir que tudo tem dado certo, que as pessoas fazem a magia das cachoeiras e das grutas e das montanhas permanecer comigo (com a gente) ao fechar a porta de nosso chalé. Nosso sótão é digno de ternura bem-humorada, passagens eternizáveis de Eduardo Galeano e sua Helena que era e não era uma cachorra, uivos ali do alto, assovios: Saci Pererê? Descobriria sozinha a magia desse lugar encantado? Apago a luz. Porque todos já dormem pesado. Ou quase todos.
II. "Como te descrever o que vejo agora?"
Sinto que nunca tenha experimentado uma sensação tão próxima do que seja a paz (consciente). A paisagem é como a paradoxal liberdade estampada na imobilidade das montanhas que vejo nesse momento, com o ouvido direito encostado na manta amarelo-manga sobre o capim vivo e luminoso. Olho em direção ao Sol que encosta delicadamente pouco antes do pico arredondado do morro e não me incomodo. O dia está para adormecer e minha tranquilidade é desperta, paz distante da sonolência, que silencia os desejos variados e me diz que não quero mais nada além do que estou vivendo. Talvez meu único desejo latente aqui seja que esse tempo demore a correr... que seja como minhas pálpebras anciãs que não tem pressa em levantar-se ao abrir os olhos por não se afobarem em provar com os olhos a imensa beleza que a harmonia bucólica pode proporcionar. Deitada, com a respiração tranquila, então sentindo as sensíveis ondulações da terra nos meus cotovelos, na extremidade inferior do tórax em todo o meu abdômen, na virilha, nas coxas e nos joelhos, sinto-me parte dessa paisagem arborizada e montanhosa. Sou uma montanha e sinto que posso voar. Daí o paradoxal. Em poder voar, não desejo sair daqui. A sensação é a de que, como pássaro-montanha, poderia ir a qualquer canto do mundo, só que meu trinar não seria mais puro e verdadeiro em nenhum outro lugar dessa realidade habitável, mas passageira. Por isso, permaneço.
Desde que deitei no amarelo, a temperatura do ar tem diminuído, no mínimo, dois ou três graus, o silêncio acompanha a queda da temperatura. O radinho AM lá do fundo já não toca, o galo preguiçoso há tempo não dá sinal de vida e as pessoas que estavam comigo saíram para ver o pôr-do-sol. Estou só. Eu e as montanhas. Eu, montanha. E os pássaros que voltam aos ninhos e as plantas que cheiram amora-jabuticaba-madura-mel-de-todas-as-flores. Oito pássaros mínimos sobrevoaram a árvore de galhos espalhados que fica à minha direita, em frente ao nosso chalé. Parecem negros, mas talvez seja apenas impressão. Aposentei meus óculos desde o segundo dia em que cheguei aqui. Sempre pensei que eu fosse uma pessoa predominantemente contemplativa, mas vi que prefiro sentir a brisa fresca das tardes e o calor agradável das manhãs atravessando meus cílios do que enxergar bem os detalhes que minha miopia cega à certa distância.
Baba nos meus cabelos e no meu rosto. O cachorro da Dona Márcia me tirou das descrições por alguns instantes. Mastigou meu cabelo, atropelou minhas costelas e foi abraçado pela vítima algumas vezes. Abana o rabo e se diverte com minhas interjeições do inesperado. Escureceu. Atrás do cachorro, a dona vem até mim, deixa um ramo de erva para chá e conversa comigo por uns vinte minutos. Fala de sua predileção pelo agito de São Paulo, de como sua irmã encontraria um marido no terminal rodoviário e avisa que o Festival de Música aqui de São Thomé começa amanhã. Combinamos de irmos juntas. Meus amigos, ela e mais alguma gente. Estranha-te meu isolamento nessas terras enquanto meus amigos caminham já de lanternas acesas? Meu repouso não é iniciativa vã - fiquei para que minhas pernas se recuperassem até amanhã. (Escurece completamente, a Lua dá um sorriso de finos lábios, entro no chalé, preparo o jantar, o gás acaba, subo para o sótão de madeira e volto a escrever; agora com fones no ouvido, ouço a trilha de "Cold Mountain" e trajo uma blusa de lã; faz muito frio!) Explico a necessidade do repouso: estamos a alguns metros da cachoeira da Lua ("da Lua" porque o lago formado pela cachoeira é cristalino a ponto de refletir encantadoramente a Lua quando cheia - é o que dizem...) e numa passada não muito planejada por lá, resolvi tomar coragem e me pendurar na corda de nó, perfurando o ar até o instante em que me lançaria na água. À primeira vista, simples demais. Todavia, "o que aconteceu, Camila?". Braços muito esticados: queda desengonçada na água. Segunda tentativa ("tente outra vez..."): saída magestosa, vôo de cisne, desastre no lago, na areia beira-rio! "Gelo, gelo!","quer se apoiar em mim?", "nossa, tá inchando demais!". Hipopótama manca seguindo a estrada de terra até a porteira. (ouvindo "Lago dos cisnes"... CISNE?) Agora quase não dói mais... nada que deixar as pernas de molho na gelidez do próprio lago por algum tempo e receber uma massagem com anti-inflamatório não resolvesse. E, por falar nisso, aproveito para registrar como as pessoas têm tratado umas as outras: é de uma gentileza e solidariedade naturais incríveis. Todos muito atenciosos, amigos e generosos. A massagem foi só mais uma demonstração disso. O café-da-manhã é outro costume que não pode passar batido: gosto de aproveitar os raios solares assim que me levanto. Vou até a varanda, sento numa cadeira ou na própria grama. Respiro a energia rupestre, o estômago reclama algum murmúrio. É quando chega o primeiro copo de "suco verde" - 70% frutas, 30% verduras - e o banquete começa. Para comer, não é preciso ir à mesa. Servem à boca. E olham nos olhos para oferecer. Todos. A todos. A comunhão matinal. O sabor da gente. O abacate com aveia. O pequeno gesto. O belo despertar do amor comum. (E onde raios estarão? Deviam ter voltado ao chalé há horas!)...
"Eu não preciso de nada
O mundo é minha casa
O céu é minha camisa
Estrelas vestem meus pés
Eu não preciso de nada
Estrelas vestem meus pés..."
"Eu não preciso de nada
O mundo é minha casa
O céu é minha camisa
Estrelas vestem meus pés
Eu não preciso de nada
Estrelas vestem meus pés..."
Um comentário:
Que magnífico relato Cami! Deveria nos ter mostrado antes... quantos anos para sua revelação, porém também maravilhoso lê-lo agora pois resgata o quanto aquela viagem nos foi inesquecível!
Poetas são aqueles que conseguem transformar as sutilezas dos momentos e as profundezas do espírito em palavras. E é exatamente isso que senti ao ler seus relatos. Você é uma incrível poetiza!
E que viajemos mais, pois agora que nos trouxe este mundo de volta à tona, a nostalgia não é o bastante para aquecer nossas almas, precisamos viajar juntos novamente e viver essa harmonia, que ao meu ver é o que há para ser vivido, o resto é ilusão!
Grande abraço,
Susan
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