POR QUE É QUE NÃO SE PODE CHORAR EM PÚBLICO?

O sorriso é um gesto. E um gesto não é simplesmente intrínseco ao ser humano ou codificado geneticamente nele. O gesto foi e continua sendo construído socialmente. Ele é uma forma requintada da linguagem, aprimorada no decorrer do tempo. E suas primeiras aparições podem ser identificadas historicamente: "O sorriso documenta-se nas sociedades hierarquizadas, civilizações já tradicionais, com cerimonial e pompa. O mais antigo sorriso, esculpido em mármore nuns lábios femininos, olha-se ainda na Niké, de Delos, obra de Arquemos, 550 anos antes de Cristo." (Cascudo, Luis da Camara. Em "Historia de nossos gestos".)
O choro não. O choro não é um gesto, é um impulso natural, biológico. Tanto que, ao nascer, antes mesmo de que a socialização primária pudesse agir sobre o indivíduo, o bebê já chora. Sinal de saúde abrir o berreiro ao levar um tapa no bumbum. O choro, até então, é um impulso causado pela dor e, na ausência de outros mecanismos de linguagem, é uma ferramenta útil de comunicação (apesar de ser uma linguagem mais consciente a quem cuida do bebê do que a ele próprio): "Isso dói!", "Estou com fome, mamãe.". Porém, o choro é tolerado socialmente apenas enquanto a criança não possui (e nem seja humanamente possível ter) o domínio das outras linguagens. Pois somos uma sociedade funcional. E o choro perde a sua função à partir do domínio dos outros mecanismos de comunicação. Deve ser evitado, pois. É o social condicionando o biológico. À partir dessa fase, o indivíduo deve demonstrar publicamente que sua racionalidade é capaz de controlar seus impulsos biológicos (o choro, a flatulência! rs), sendo mais forte do que estes últimos. Pois a sociedade atual é a que valoriza os seres racionais. É a sociedade dos que dominam as linguagens oral, gestual e escrita. Dos que dominam o discurso, a retórica, o sorriso. Aquele que não é eficaz na comunicação com os demais é discriminado socialmente. "Chorar é para os fracos."
Mas há algumas situações específicas em que o choro ainda é aceito publicamente. Numa encenação artística, por exemplo. Ou em ocasião de morte de um ente querido. Porém, antes de concluirmos alguma coisa e rejeitar tudo o que sugeri até aqui, analisemos os casos: numa peça teatral ou num filme hollywoodiano (que seja!), o ator que consegue ir às lágrimas chega a impressionar ainda mais a platéia, o público, e é até admirado por causa da sua atuação, ao contrário do que se pensaria do "chorão" da sala de aula ou do bar da esquina. Num velório, compadecemo-nos dos que transbordam emoção ao invés de discriminá-los por isso. Embora possa parecer, nada disso anula o que foi proposto. Nossa sociedade continua sendo a que preza pela racionalidade, aquela que retrai nas pessoas os seus impulsos naturais, recriminando todos os que não possuem o domínio sobre estes. Tanto é que, no caso da encenação, não se aplaude pelo choro como mero e desprezível impulso natural, porque no teatro ou no cinema, o choro se torna mais um recurso expressivo do ator/atriz, e vai além, demonstra um domínio ainda mais extraordinário do racional sobre o biológico - chora-se à partir de um ponto preciso do roteiro, choro tocante e programado. "Ele é um ótimo ator, hein?". Quanto a estar à beira de um túmulo, às lágrimas pela perda de um ente querido, é socialmente permitido, sim. Pois, por mais especulações que sejam feitas sobre a morte, a racionalidade ainda não deu conta de explicar essa passagem. Eis um lugar em que se pode chorar publicamente: no cemitério. Um tanto tétrico, não? Ou então, escolha um banheiro bem isolado da casa para fazê-lo sem ser incomodado. Ah, chorar...


Outro em resposta ao Alemão.

(Blog momentaneamente injetado de racionalidade. Fora do meu comum.)

2 comentários:

Noubar Sarkissian Junior disse...

Camila,

No cemitério, mais do que um direito, me parece que chorar chega a se aproximar de um dever. Há sempre um ou outro parente cochichando: "olha lá, ele não derrama uma lágrima...como pode?"

Chorar é mesmo regido pelo que é convencionalmente aceitável, e...

No caso dos atores (que vc tão bem tratou!), principalmente quando se fala em teatro, há todas essas outras induções. Há o ator, que chora e ri em momentos pré-concebidos; há a platéia, que tem hora pra aplaudir, hora pra levantar, e mesmo hora pra rir, ainda que seja por solidariedade ao ator ou à peça que podem não estar sendo tão convincentes.

Rir e chorar por aí, pela Paulista, ainda que seja pra ser tomado por louco, emo, e qualquer outro rótulo que nós, os vivos, impomos a nós mesmos!

(Ah, as Sociais...) Belos textos!

Dani disse...

Humm!!! outro texto cheio das nossas aulas de antropologia e sociologia!
Gostei muito da sua explicação pro choro ser aceito ou não! Daria um bom livro!

E comecei a ler os textos "atrasados" de baixo pra cima...e achei que tivesse escrevendo esses dias...me enganei...mas foi muito bom ler esses!