Atraso
Então, começo. Se a inspiração não chega, eu corro atrás dela. Desengonçadamente. Vou. Descrevo um pouco do que me vem. Do que foi. Sem boniteza no falar, nem nada. E tanto passou pela minha frente, e já se passou na minha cabeça nesses últimos tempos, e foram experimentados pelos meus sentidos, e retornaram à mente, e viraram lembrança, e buscaram sentido no que não fazia mais o menor sentido... ah. Um dia pensei em escrever sobre um violão nas costas como chamariz de conversas inusitadas com gente desconhecida. Foi no dia em que ia assistir a um documentário encantador no Bombril lá da Paulista em companhia não habitual, mas esperada. Serena e alegremente esperada. O completamente inesperado começou no caminho de lá, quando só, no metrô: um sexagenário, calvo e um tanto acima do peso, sorria para mim. Sentou-se ao meu lado, "a mocinha é música?" (talvez quisesse ser...) e contou dos seus dias-cor-pastel de aposentado na praia de Santos aos anos dourados de sua juventude, "eu era o xodó da turma, o único menino...". Nostalgia transbordante. Faltava ternura naqueles olhos, além de uma boa parcela de sua audição. Era preciso gritar para respondê-lo e confiar na sinceridade de suas lembranças, mais do que na veracidade dos relatos roucamente transmitidos ali para interagir de fato e superar a "estranheza" inicial. Mas foi até breve demais: "Próxima estação: Paraíso". Acenou para mim de dentro do trem e já me parecia familiar. Foi. Segui rumo à Consolação, catracas, Conjunto Nacional. Outro, de passagem, aparência distinta e cabelos completamente brancos, já na recepção do cinema, aponta para o "objeto" nas minhas costas, "Estuda?"; "não, não... o senhor..."; "... toquei violino por algum tempo, mas não tinha ouvidos-de-músico..." Disse isso com um certo pesar, parecia. "... agora só aprecio.", então, sorriu, deixou-me um "boa tarde", - mantendo boa a tarde, gentil! - e seguiu em direção à sala de cinema. Quando penso que não, já estava papeando com um moço simpático do interior do estado, que havia chegado há uns poucos anos aqui em São Paulo e se realizara nos bastidores do Teatro Municipal! Na sua cidade, trabalhava num cartório. E agora, como era feliz nas Artes! Logo mais, chega a "companhia oficial", sorridente, a pedir desculpas pelo atraso. Brilhavam os olhos: havia comprado um violão artesanal e o deixara no carro pra fazer música depois do filme. Bem pensado (agora penso): se queria evitar mais atraso, melhor esconder aquele convite aos diálogos dos caminhos paulistanos, que de distração tinham tanto, mas que ultrapassavam os limites de mero acaso. Que fossem. De todo modo, coisas assim que me fazem lembrar o quanto de histórias, o quanto de vida, permeia essa multidão aparentemente máquina. Aliás, o quanto não, incontáveis são elas. Vontade de saber mais. Não me incomodo com atrasos. Parece haver um mistério em cada corpo. Nós, os vivos. Querida massa dinâmica. Saudosismo bobo. Pode ser. Ah... Quero tatuar um violão nas costas!
2 comentários:
Sempre me delicio com seus textos, menina. Uns me encantam simplesmente pela bela junção de palavras. Outros entram praquele meu repertóriozinho de referências, a que recorro sempre que desejo lembrar de algo bom.
Esse texto de agora, você sabe, é especial. Como me faz bem ser o moço que chegara atrasado e sorridente, meio culpado, meio com vontade de pedir desculpas cantando. Eu até que sou um cara sensível, mas não costumo me emocionar de terno e gravata. Aqui, num clima de formalidades e apereza, e onde não sei por que raios o acesso aos blogs está momentaneamente liberado, quase não contenho minhas lágrimas.
Imagine: há outras pessoas aqui no acervo, trabalhando como eu nas outras horas, com suas vidas próprias, suas próprias angústias. Elas, as vivas. Pois então, imagine. Imagine que minha vontade era levantar e chamar toda a Nestlé pra te ler. Tentar contagiá-los e estimulá-los a tatuar violões nas costas.
Você contou, com uma destreza que eu não alcançaria, muito do que se passa comigo quando o violão está fisicamente em minhas costas. As pessoas interagem. É gostoso, revigorante, como os impulsos dos quais falamos.
Ontem cheguei em casa com os sentidos transbordando depois do filme e do debate (encontrei até o Ricardo por lá, embora ele não tenha ficado pra sessão). Você TERÁ DE VER!
Beijos já recompostos!
Noubar
Ah, Moça, sempre acompanho as inclusões e alterações das fotos!
Lindas!
Beijos de quem gosta também de sua racionalidade!
Noubar
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